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CULTURA

Sobre um sonho dentro de uma letra de Bob Dylan

Pelo que li há algum tempo atrás, não me lembro bem quando nem onde, Hendrix resolveu começar a cantar depois que ouviu Bob Dylan. Nada poderia ser menos musicalmente promissor do que aquela voz anasalada. E, no entanto, alguma potência se afirma a cada verso de suas letras em sua própria voz.

09/12/2015 - 09:38
Silvio Demétrio

Silvio Demétrio

Grad­u­ado em Comu­ni­cação Social — Habil­i­tação Jor­nal­ismo pela Uni­ver­si­dade Estad­ual de Lon­d­rina (1994). Mestre em Ciên­cias da Comu­ni­cação pela Uni­ver­si­dade de São Paulo (2001). Doutor em Epis­te­molo­gia da Pesquisa Em Comu­ni­cação pela Uni­ver­si­dade de São Paulo (2007). Pos­sui exper­iên­cia na área de Comu­ni­cação, atuando nos seguintes temas: Cin­ema, Metodolo­gias de Análise Visual, Con­tra­cul­tura, Pós-Modernidade, Esquizoanálise, Deleuze & Guattari,Jornalismo Cul­tural, Cap­i­tal­ismo Tardio.


Dylan é o supremo menestrel, o herói do engenho da métrica que transforma em música tudo aquilo que não rima. Sua poética é marcada por narrativas que investem em grandes imagens. “Antena da raça”. Assim como o beat Allen Ginsberg em Witchita Vortex Sutra, Dylan compõe profecias. Suas melhores composições podem ser lidas dentro dessa tradição. O poeta como oráculo que mistura palavras para diluir o tempo, a maior de todas as ilusões. À espreita de epifanias. Revelações.
Dei-me conta disso ao acordar de um sonho que tive na semana passada (desculpem, ficamos sem nos encontrarmos aqui na última quarta – o vazio da rotina dessa vida paga em boletos venceu a peleja momentaneamente: prometo lutar bravamente para que isso não aconteça mais). Voltando ao assunto, eis que sonhei com uma letra de Dylan. Não com sua figura. Era como se eu estivesse dentro da narrativa de uma de suas letras: “It’s a Hard Rain Is Gonna Fall”, faixa de “Freewheelin”, clássico absoluto de 1963.
Daquela maneira pela qual perdemos as referências fixas nos sonhos, eu estava em algum estacionamento. Um amplo céu escancarado começa a ser preenchido por nuvens cada vez mais pesadas. Estou dentro de um carro que não consigo identificar e, quando me dou conta, minha filha vinha correndo ao longe. Gritei para ela vir se abrigar comigo. Ela veio e com ela nossa cachorrinha. Ficamos no carro conversando sobre muitas coisas durante todo o tempo que a tempestade caía. Acordei com a música de Dylan na cabeça.
A estrutura é simples. Versos longos agrupados em quatro estrofes-momentos. É uma conversa entre pai e filho. O pai pergunta por onde o filho tem andado. Cada verso descreve sinestesicamente uma paisagem onírica de florestas tristes e oceanos mortos “(I’ve stepped in the middle of seven sad forests /I’ve been out in front of a dozen dead oceans”). É quando vem o refrão da balada: “and it’s a hard rain’s a-gonna fall”: literalmente “é uma chuva pesada que vai cair”. Ao todo são cinco momentos. Depois de perguntar por onde o filho tem andado, o pai pergunta por quem ele encontrou, o que viu, o que ouviu e o que ele vai fazer.
Foi uma conversa assim que aconteceu no sonho. Minha filha de olhos azuis e eu, ambos ali no meio de um não lugar sob o abrigo de um carro qualquer. A sensação de vertigem como se o céu fosse a promessa de uma queda. Talvez o que seja mais assustador numa tempestade é que ela dilui o horizonte. O céu se torna um espaço fechado. Um espaço de não deslocamento. Tempestades nos ensimesmam. Como não fechar-se em si mesmo quando tudo em volta está em colapso? 
São pequenos abrigos assim aos quais nos apegamos em momentos nos quais o céu desaba. Por mais forte que seja a chuva e impessoais o momento e o entorno. Tudo parece se fechar quando a lama escorre, as escolas fecham, os jornais se encerram e o ano teima em não acabar. Daí essa solidão toda perambulando em shopping centers de olhos atolados em smartphones. É hora de procurar por linhas de fuga. Celebremos todos os desertores, aqueles que abdicam de seu assujeitamento. O sol retorna sempre em nome de quem não abaixa a cabeça. Não olhe para baixo.

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