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Formar plateia em Toledo: um convite à escuta e à resistência

A palavra, para existir, precisa de um corpo que a pronuncie e de um ouvido que a receba.
21/06/2025 - 00:01
Por Cleonice Alves Lopes
Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes é poeta, escritora, mediadora de leitura, professora e mestra em Letras. A escrita e a leitura de poemas e contos são algumas das atividades literárias com as quais é comprometida, considerando-as também, atividades terapêuticas que a tem salvado em tempos de céu cinzento. Possui poemas e contos publicados em coletâneas e antologias com o coletivo Mulherio das Letras, tendo, inclusive, organizado uma Coletânea de contos em 2018 com o selo do movimento.


Em Toledo, cidade do oeste paranaense que pulsa com a energia de seus mais de 150 mil habitantes, o calendário cultural floresce em uma profusão de eventos artísticos e literários. Da efervescência de saraus e apresentações teatrais e circenses à solidez de mostras de dança e exposições, o território se oferece à fruição estética. Dentre esses marcos, a FLIT – Festa Literária de Toledo, que em 2025 celebra sua quarta edição desde seu nascimento em 2022, consagra-se como um dos vértices desse movimento, um espaço onde a linguagem se manifesta em toda a sua potência transformadora.
Entretanto, para além da oferta e da qualidade desses encontros, reside um desafio que não é apenas logístico, mas profundamente simbólico e político: a formação e o cultivo da plateia. Não se trata meramente de preencher cadeiras ou contar números, mas de convocar a comunidade a um ato de presença que transcende o lazer. É um convite à escuta ativa, ao acolhimento da(o) outra(o)– seja ela(e) artista, autora ou a própria obra – e, em última instância, à prática de uma resistência silenciosa contra o apagamento da cultura como bem essencial.
 
Presença: o corpo que escuta e o espírito que resiste
Formar plateia, nesse sentido ampliado, é um gesto que transcende a simples logística de um evento cultural. É uma pedagogia da presença, um convite para que o corpo que ocupa o espaço seja também um corpo que escuta, que dialoga, que se deixa transformar. Não basta erguer palcos e abrir microfones se os olhos e os ouvidos permanecem cerrados à pluralidade de vozes que buscam eco. Estar presente em um sarau, em uma apresentação teatral ou em uma roda de conversa da FLIT não é apenas um ato de consumo cultural, mas uma ocupação de um direito fundamental: o direito à escuta.
Nesse ato de comparecer, há uma potente afirmação. Ao nos dispormos à recepção da arte e da literatura local – dos poemas declamados nos saraus, das memórias narradas por mulheres em seus coletivos, das contações de histórias que irrompem a voz jovem, ou das histórias que a ancestralidade nos conta –, estamos ativamente construindo um repertório sensível e crítico. Estamos validando o esforço de artistas e organizadoras(es), tecendo um pacto silencioso de valorização do que é nosso, do que nasce e pulsa no próprio território. A presença, assim, torna-se uma forma eloquente de resistência contra o apagamento simbólico, contra a colonialidade da linguagem que tantas vezes nos afastou das periferias culturais e do direito inalienável à arte. É um ciclo virtuoso: quando o público se entrega, o evento floresce, atrai novas energias, consolida-se como um pilar de nossa identidade cultural.
 
FLIT: a política pública da escuta e o futuro que se constrói na presença
Ao alcançar sua quarta edição, a FLIT em Toledo não se firma apenas como um evento no calendário, mas se consolida como uma autêntica política pública de acesso à literatura e à arte. Em cada mesa de debate, em cada roda de leitura, em cada performance, pulsa uma disputa narrativa: quem tem o direito de contar histórias? E quem está disposta(o) a escutá-las?
O desafio, portanto, não é apenas o de realizar essa Festa Literária, com toda a sua riqueza e diversidade. É o de cultivar uma pedagogia do comparecimento, um modo de ensinar, pelo exemplo e pela vivência, que a arte não existe sem a outra pessoa, sem o corpo que se dispõe à escuta, sem o olhar que se permite ser atravessado pela palavra. Toledo já demonstra talento e estrutura para oferecer cultura de qualidade; o passo seguinte é que a comunidade compreenda que estar ali, presente, é um ato de cuidado consigo, com as(os) artistas, com a cidade.
Que a FLIT continue a crescer, e que cada cadeira ocupada seja mais do que um lugar físico: que seja um ato de aposta na imaginação, na memória e na liberdade. Que o gesto de ouvir se transforme em rotina. E que, juntas e juntos, possamos reverberar em Toledo a potente afirmação: eu escuto, eu me importo, eu permaneço. É aí que, de fato, a resistência floresce.
 
Cleonice Alves Lopes
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