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OPINIÃO

Por Jorge Eduardo Huyer: Os melhores amigos do povo

Moro no bairro BNH da Industrial e por aqui não existem moradores de rua, ocasionalmente aparece um estranho caminhante solitário, pede algo com os olhos, fala pouco e vai-se embora. Certa vez, andando  pela estrada, parei o carro e ofereci carona para um caminhante, queria saber sobre o seu destino, queria sentir sua liberdade. Recusou-se evidentemente, sua vida resumia-se em ir, mas de uma forma diferente, mais livre, concluí.

14/12/2011 - 15:49


Em qualquer lugar do mundo, os moradores de rua se fazem acompanhar de cães, os caminhantes não. Deve ser sua forma de se socializarem. Gosto de observar os grupos em movimento, sempre acompanham o seu líder, no caso, o morador de rua. Ao se locomover, carrega consigo os cães que, obedientes, andam sempre atrás do chefe. Se ele para, os cães param, se ele dorme nas calçadas, os cães se aninham e esperam a ordem de se locomoverem. Cães de rua são sempre mais resolvidos, espertos e serenos do que os cães de raça. Eles sabem quem é o chefe e não discutem a hierarquia. Raramente atacam alguém e só brigam em caso de invasão intencional de território ou quando defendem o alimento.

Os vira-latas têm minha predileção, há tempos adotamos dois filhotes machos, RND, quero dizer, raça não definida, foram deixados no portão da minha casa, num embrulho mal feito com folhas de jornal. Medicados, se recuperaram. Todo o dia pedem para sair à rua, vão e só voltam umas duas horas depois, faceiros, alegres e felizes. É costume, tá no sangue. Ao voltar, latem no portão até que alguém os deixe entrar. A vizinhança já sabe de quem são e onde moram. Nas suas andanças percorrem o bairro sem coleira e sem estresse. Vão longe, já foram vistos lá pela bandas do Novo Lago. Às vezes ando com eles e percebo que, pela suas experiências, evitam,  meterem-se em fria. Se enxergarem ao longe alguma aglomeração ou um cachorro maior, tratam de evitar o futuro obstáculo ou confusão desviando o caminho.

Tom Jobim e Vinícius de Moraes adoravam seguir grupos de cães pelas ruas, especialmente quando havia uma cadela no cio. Depois das longas noitadas, votavam para casa mijando em postes e paredes, comportamento de matilha. Vi estudantes voltando para suas casas nas mesmas atitudes. Era uma forma de se divertirem, flanar, observar o cotidiano e, talvez, preparar o espírito para alguma criação musical ou revés de uma prova.

Por trabalhar em outras cidades e lugarejos remotos, comecei a observar que o ritmo das populações locais é marcado pela movimentação dos seus cães. Se num povoado os cães estão em frenesi, andando para baixo e para cima, o comércio local está movimentado. Se os cães estão parados, descansando embaixo dos bancos de praças ou nos gramados, o lugarejo também está parado.

Só por brincadeira, comecei fotografar e recolher materiais sobre cães de rua de diferentes lugares, e colocava suas fotos na parede do meu escritório. Comecei com a minha velha Nikon. Fiz a primeiras fotos de um que rondava ocasionalmente a Boca. Outros que habitavam praças e arredores do Paço, alguns pelas vilas e margens das estradas do interior. Na UNIOESTE soube de um que foi adotado, sobrevivia, alimentado com restos de comida pela comunidade acadêmica. Guardei a reportagem de um cão que concorria diariamente para a porta de um hospital, esperava a saída do seu dono e infeliz companheiro que havia morrido. Tenho fotos interessantes de um vira-latas acompanhando uma procissão, outro literalmente estacionado em uma porta da Igreja, amarrado no trinco. Alguns amigos resolveram colaborar, me enviaram fotos e fatos sobre o assunto. Em pouco tempo juntei uma galeria de imagens e impressões curiosas. Guardo-as com muito carinho. A mais instigante foi-me presenteada por um grande amigo que tive, Amandio Teté Pereira. Tem um cão vira-latas andando cuidadosamente e se equilibrando na borda entre um abismo e uma enorme esterqueira. Caminha com perfeição, como se andasse sobre a corda bamba. Sem que o observador perceba, molha sutilmente as pontas dos seus pés nos conteúdos que transbordam. Mas não cai. A imagem fala por si. Esta foto me é emblemática. Disse-me que encontrou-a por acaso, provavelmente esquecida por alguém, ou intencionalmente deixada entre alfarrábios e cartapácios a esmo.

Cães de rua trazem a genética da mistura: todas as raças estão ali representadas. Li um documentário sobre cães do terceiro mundo, e o trabalho falava das misturas das raças que ainda existiam nos países onde os cães circulam de forma livre. As cenas foram feitas no México e no Brasil, poderiam ser feitas no Paraguai, os parâmetros comparativos revelariam mais evidências e semelhanças e, além disso, estariam logo aí, bem perto, para comprovações.

É uma pena que, com o crescimento das cidades e por medidas profiláticas, os cães de rua estejam desaparecendo. Restam os que vivem acompanhados por seus donos, os moradores de rua e os que ainda sobrevivem nas pequenas cidades do interior. Quando têm a sorte de serem adotados por um dono, são serenos, calmos, obedientes, resolvidos, submissos, permitem-se sob coleiras. Quando não, passam fome, apanham muito, são assustadiços e andam com o rabo entre as pernas.

Nelson Rodrigues cunhou a Seleção Brasileira da Copa de 58 com a expressão "complexo de vira-latas", errou na previsão. A Seleção vira-latas sagrou-se campeã, mas, pergunto-me, seria novamente?

Jorge Eduardo Huyer

Engenheiro Civil

Toledo PR

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