Mais uma vez ao passar por aquela ponte as lembranças do que ocorreu me alcançam. Talvez seja o dia chuvoso que evoca as memórias, pois naquele data, há quase quarenta anos, estava um misto de chuva e frio. Era uma típica manhã de inverno numa época em que os invernos eram mais rigorosos do que atualmente. No final dos anos 80 ainda havia uma distinção mais nítida entre as estações do ano não com tanto rigor como era no início do século passado. Tampouco como o que vivemos nas primeiras décadas deste novo milênio.
Íamos e voltávamos de ônibus todos os dias para a escola em que eu estudava. Era praticamente uma hora de percurso na ida somada a outra uma hora no retorno. Em dias chuvosos havia o incômodo de nosso ônibus ficar preso em partes do trajeto por causa da lama no chão de terra. Nesses dias nosso transporte era de micro-ônibus porque passava com mais facilidade pelos trechos lamacentos.
Naquela manhã foi assim. Não tenho lembranças da ida nem das aulas na escola. Eu tinha que acordar muito cedo para me arrumar para a escola e como ainda hoje acontece, sou bem lenta nesse primeiro período do dia. Lembro do trajeto de volta desde que embarcamos no micro-ônibus até minha chegada em casa, cerca de duas horas depois. Essa memória existe porque a reprisei inúmeras vezes ao pensar sobre a tragédia que aconteceu.
Estávamos sempre com fome nesse horário ainda que fizéssemos um bom lanche no recreio da escola. A demora para chegar em casa era suficiente para nos deixar famintas. Cada estudante que desembarcava saía correndo para entrar em casa e almoçar. Aqueles cujos trajetos perto de casa eram de estradas sem asfalto, na maioria das vezes, precisavam ainda caminhar alguns quilômetros porque o transporte não corria o risco de ficar no lamaçal, fato que já ocorrera inúmeras outras vezes.
Quando isso acontecia era necessária toda uma logística para desencalhar o veículo e chegar ao destino. Muitas vezes foi preciso que os sitiantes das redondezas auxiliassem com tratores para ajudar na tração. Os atrasos eram frequentes e motivo de reclamação de quem morava nos trechos com asfalto e tinham que passar pelos mesmos infortúnios que nós porque havia um único ônibus para todas as linhas. Então ainda que morassem mais próximos da cidade chegavam no mesmo horário que nós que morávamos interior adentro.
Domingos chegou em casa do trabalho e vendo o tempo chuvoso pegou seu carro e foi buscar a filha e o filho que vinham da escola. Ele sabia que a turma de estudantes teria que caminhar naquela estrada lamacenta e lisa e o seu Fusca conseguiria passar pelo trajeto que o micro-ônibus não fazia em dias de chuva. Enquanto esperava munido de capas e guarda-chuvas juntamente com outros pais ele notou a demora da chegada do transporte. Era uma situação que ocorria comumente, porque dirigir com pouca visibilidade exigia do motorista cuidado com a pista molhada e velocidade mais baixa. Domingos havia deixado o prato de comida na mesa por preocupação com a filha e o filho. Foi buscá-los para almoçarem juntos.
No trecho logo após a ponte havia uma igreja e uma escola à direita e o caminho de casa de alguns estudantes à esquerda. Quem ia desembarcar, já se arrumava em pé no micro-ônibus, colocando suas mochilas nas costas. De longe pudemos ver os carros e os pais esperando do outro lado da rodovia. O motorista parou no acostamento, a porta se abriu e foram descendo. Foi tudo tão rápido e tão impactante que ainda agora, sinto as mãos trêmulas enquanto descrevo o ocorrido. No entanto, não posso protelar mais, chegou o momento de resgatar essa história, preciso fazê-lo por mim, por você, pelos seus.
Você desceu e foi cruzar a rua passando pela frente do micro-ônibus. Por quê? Não sei se você esperou para ver se podia atravessar, se pensou rápido e não teve mais como voltar. Por que não fez como os outros e foi por trás? Mas você estava com fome, e com pressa para chegar logo em casa. Você era uma menina de 11 anos e não teve tempo de mudar de ideia. Eu ainda me recordo do seu rosto toda vez que retomo essa memória.
O motorista do caminhão vinha em alta velocidade porque naquele trecho há um declive antes da ponte e logo depois há um aclive que exige potência. Caminhões carregados costumam passar por ali sempre bem embalados para subir com mais facilidade o restante da estrada. Seu irmão que estava logo atrás de você contou, dias depois, que sentiu o vento forte quando o caminhão passou. O ar ficou mais denso, com cheiro de diesel misturado à terra molhada e um silêncio que parecia ensurdecedor antes que os gritos começassem. Seu pai ficou tão desesperado que não sabia o que fazer. Correu até onde seu corpo foi lançado pela força do impacto, mãos na cabeça, aturdido. Era forte demais aquela cena, todo aquele desenrolar dos fatos era atordoante.
Passados uns vinte minutos do impacto, alguns de nós descemos do micro-ônibus e fomos ver seu corpo. Curiosidade mórbida de adolescente. Porém, minha mente já apagou o que, naquele momento, tolamente me achei corajosa de ir ver. Quando o motorista do caminhão conseguiu voltar a pé até o local do acidente, Domingos estava enfurecido, e a dor que gritava por ele culpava o caminhoneiro.
Ficamos mais meia hora ainda lá, mas precisávamos voltar para nossas casas. E o nosso micro-ônibus seguiu caminho. Me vi pensando algumas vezes no quanto o motorista que nos levava sentiu-se responsável pelo que ocorreu. Talvez pensasse que se tivesse dito para atravessar por trás, ou para esperar que o micro saísse para ter mais visibilidade para cruzar. É algo que costumamos fazer, remoer um acontecimento até a exaustão, ainda mais um fato trágico como este.
Quando desembarquei perto da minha casa, precisei caminhar mais alguns metros para chegar. Minha mãe estava na varanda da frente da casa me esperando, com semblante preocupado pela demora. Eu não havia chorado com todo o impacto, mas ao vê-la ali, o choro escoou. Pensei na sua mãe, na sua irmã, nos seus e no quão doloroso seria. Ainda que tenha havido uma grande demora para chegar, minha mãe teve sua filha nos braços sã e salva, evento que não ocorreu para sua mãe.
No dia seguinte fomos à escola, mas não ficamos muito porque a direção organizou a ida de nossa turma para o seu velório. Ali, na sala da sua casa, nos despedimos do seu corpo, mas seu espírito já havia ido para o lugar onde vão os espíritos de meninas meigas e doces que cumprem seu propósito e fazem sua passagem. Minha mãe e outras mães e pais revezaram caronas e foram também dar apoio à sua família.
Passados alguns anos, sua família foi na minha casa fazer uma visita e, como não poderia deixar de ser, falamos sobre você e sobre a situação trágica que envolveu a todos nós. Revi sua irmã e sua mãe que só havia encontrado na sua despedida. Foi bom ver que estavam conseguindo seguir com a vida. No restante daquele ano, passei incontáveis vezes por aquele trajeto da ponte a caminho da escola. E mesmo depois que precisei estudar numa cidade que acabara de se emancipar, ainda fazia aquele caminho de ônibus para fazer compras, visitar amigas, fazer cursos, ir a eventos. Tive que me acostumar a passar por ali sem pensar na tragédia ocorrida.
E hoje essa folha branca passa a saber de você porque preciso contar minha versão dessa história. Contar que você e eu tínhamos a mesma idade, estudávamos na mesma sala e que você era uma aluna esforçada apesar de bastante quieta. Contar que não éramos amigas, apenas colegas de turma, que eu impliquei com você naquele dia, logo que entramos no micro-ônibus, o motivo não me recordo mais, mas lembro do seu rosto de desaprovação a algo que eu disse, algo que eu fiz... Não sei. E a ironia cruel é que a última memória que tenho de você é essa, mas também isso se dissipou no ar.
No seu velório, em conversa com sua professora da escolinha próximo à ponte comentei que esse fato estava me incomodando. Ela gentilmente sugeriu que eu fosse até você, colocasse uma mão sobre seu corpo e pedisse desculpas. Fiz como recomendado, mas a sensação ruim que eu sentia continuava. Só com o tempo entendi que era a sensação que sentimos em momentos fúnebres, a mesma sensação que tenho em dias cinzentos ainda que o sol esteja radiante.
Naquele ano lembro de pensar algumas vezes no que você faria se estivesse ainda estudando com a turma, como reagiria em determinada atividade que fizemos no último bimestre. Você teria histórias para contar, daquela época e do que viveria depois. Mas você não pode mais contar por que nessa história há uma ponte, há um caminhão, há uma menina descendo do ônibus em um dia chuvoso e frio de 1989. Por isso eu que estou aqui conto o que conto para alguém mais, além dos seus e dos meus. Para saberem que a menina Cleuza, que amou sua família e amigos e foi amada por eles, esteve aqui.





