Há um silêncio denso que habita entre as fendas dos armários, um silêncio que mimetiza o esquecimento. Não passam ruídos nem entram os gemidos de um mundo de fora. As cores das capas que adornam seus corpos conservam seu viço, uma vaidade de papel que ignora o pó, apesar de muito manuseadas na urgência de encontrar uma voz que não fosse apenas eco. É repouso de papel e trama, onde cada lombada guarda o calor de respiração contida.
Você conseguiu um espaço aberto, uma fresta de protagonismo, onde pode ver o sol pela janela sem grades. Os tons amarelo-brilhantes alcançam tua face quando os raios matutinos informam dez horas, como um chamado à consciência. O sol, aqui, não apenas ilumina; ele lê as entrelinhas do que você ainda não escreveu.
Alguns dias você se alegra por ver beija-flores nos hibiscos que moram no espaço externo. E se o vento levanta e faz girar as cortinas, as nuances de azul-escuro desenham coreografias efêmeras sobre os sofás, no chão de tacos e no seu cantinho ao teto aberto. Ali, você se descobre entre outros corpos de vestes coloridas, em uma disciplina impecável de coluna ereta e fileiras lado a lado — todos performando conformismo de objeto enquanto se preparam para a desobediência do dizer.
Você sente a calmaria no seu novo entorno, o que se traduz em um legítimo lugar de escuta. Consegue pensar em felicidade assim desse jeito. Sem as loucuras de leiloeiros que tentam precificar a alma pelo peso da gramatura ou pelo brilho da lombada, tampouco sem as mãos pegajosas dos pouco interessados. Você já esteve em vitrines disputando os resquícios de uma visibilidade imposta — aquela onde o plástico transparente finge proteger o que, na verdade, só quer imobilizar.
Já foi vendido, presenteado, trocado; contudo, é nesta fresta que você considera ter encontrado um bom lugar, o seu lugar de fala, uma cartografia própria onde o silêncio não é mais imagem de imposição, mas uma escolha — o direito sagrado de habitar o próprio vazio sem ser preenchido por palavras alheias.
Vez ou outra, quem vive contigo te pega nos braços e leva para passeio, espécie de incursão pela vida lá fora. Você sente os cheiros já conhecidos, tudo de novo, enquanto é acariciado com mãos que se abrem para o diálogo do toque. Ouve gorjeios, latidos e zumbidos, sente a brisa na tua face, sente algumas folhas voando displicentes e até um sol mais forte nutre teu paladar. Você tem certeza de que encontrou um ótimo lugar. O mundo, lá fora, é um parágrafo que se completa com a sua presença.
De volta ao seu recanto, vem cheio de prosa, semeando novidades. Traz consigo cheiro de parque, gosto de folhas e coração de pipa, leve, colorida e esvoaçante, desafiando a gravidade do esquecimento. Depois que o rubor das faces se empalidece, você conta aos mais próximos tudo o que a memória permitiu salvar do nevoeiro.
Você esquece algumas coisas — talvez as mais tristes, por puro instinto de sobrevivência — e quando a memória é retomada, ela já vem tingida por novos tons, pois toda aventura contada é, no fundo, pequena mentira que diz a verdade. Você continua narrando e todos te ouvem de pé, coluna ereta, enfileirados, imaginando quem será o próximo a sair a passeio para ser, também, um pouco de mundo fora da estante.
Têm vida, esses livros. Pulsam como insurgentes que, ao inventarem o próprio roteiro, transformam o esquecimento no tom mais alto da própria insurgência.




