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Na aplicação do Direito há conflito?

Essa pergunta sugere uma reflexão interessante. De vez em quando digo uma frase carregada de erros de português, mas que num contexto de fala é admitida, em conversas informais notadamente. A frase: “o Direito não é assim e pronto”! Nunca foi e não se viverá o dia em que a aplicação do “Direito será assim e acabou!”. A divergência, a polêmica, a controvérsia são imanentes ao Direito. Pretender separar o Direito do conflito, da polêmica, da divergência de opiniões, é como “almejar separar o azedo do limão”.

 

26/06/2011 - 11:07


Em muitos e muitos casos essa divergência é levada para o seio do Poder Judiciário para lá ser resolvida. Tudo se explica, pois o Judiciário, em verdade, existe para coibir abusos no exercício dos Direitos, sua violação, seu vilipêndio, ou mesmo ações estratégicas (da economia ou da polícia, na maior parte das vezes) movidas por pessoas que buscam os maiores rendimentos, mesmo com sacrifício alheio. Numa Democracia o Judiciário desempenha papel necessário, pois sem ele simplesmente não há Estado Democrático de Direito. Sem ele, a quem deve-se buscar tutela diante de uma violação de direitos? Ou diante de uma controvérsia (litígio)?

Parece simples, pois o Judiciário resolve tudo e bastará cumprir sua decisão. Ledo engano. Essa mesma divergência, imanente ao Direito, é encontrada no seio dos Tribunais pátrios, desde o Supremo Tribunal Federal até uma simples Vara do Juizado Criminal localizada numa Comarca interiorana. Um Ministro do STF defende um ponto de vista, e sua defesa lá representa um voto, outro Ministro defende outro, com outro voto. A Corte às vezes decide por maioria, com diferença de um voto. Muitas vezes a Corte Suprema reforma decisões do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral por maioria. Está aí a prova de que o Direito não é só aquilo que alguém diz, publica, escreve. Pode ser o que outra pessoa diz, publica e escreve. Por que não?

Na aplicação do Direito ninguém pode se arvorar e se comportar como o único sábio e o “dono da razão”, pois “Direito não é assim e pronto!”. Para a solução dessas divergências aplicam-se as normas jurídicas, princípios ou regras, carregados de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.

Na atividade de aplicação o operador encontra casos fáceis e casos difíceis. É fácil aplicar uma norma que determina que todo servidor público deve se aposentar compulsoriamente aos 70 (setenta) anos. Basta ver a data de nascimento e fazer a subsunção. Mas não é fácil tomar uma decisão quando princípios constitucionais, ou valores constitucionais, estão em choque. Aqui a atividade de subsunção não basta. Bem por isso, fica-se aqui na análise somente dos princípios. Regras, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados ficam para outro dia.

Só para aclarar, se falará de conflitos de princípios, como, por exemplo: a liberdade de expressão em choque com a saúde pública; o princípio do contraditório em choque com a efetividade da jurisdição; direitos políticos em choque com a coisa julgada. Nesses casos há choque de princípios ou de valores.

Só para citar um exemplo. O § 9º do art. 14 da CF/88 assim determina: “Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. Com isso, fica clara a existência de um valor constitucional (princípio), que é entregar um cargo elegível a uma pessoa que não venha a pôr em risco a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a sua vida pregressa. Por outro lado, a mesma CF/88 presume a inocência de uma pessoa até o trânsito em julgado de uma decisão, pois “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5, inciso LVII).

Deve-se proteger o primeiro princípio através da análise da vida pregressa de uma pessoa. Por outro lado, ninguém é considerado culpado até o trânsito em julgado de uma decisão (princípio que também deve ser protegido). Sendo assim, deve-se recusar a candidatura a cargos eletivos a quem foi condenado, mas cuja condenação ainda caiba recurso?

Veja que proibir a candidatura a um cargo eletivo de alguém condenado definitivamente é FÁCIL, basta aplicar a própria CF/88, que diz que aqueles com condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, não gozam dos direitos políticos e portanto não podem se candidatar (art. 15, II). Uma regra foi publicada para resolver o caso. É suficiente fazer a subsunção. Já proibir um condenado, cuja sentença ainda caiba recurso, é DIFÍCIL, pois há choques de princípios. Aqui se está diante de casos DIFÍCEIS.

Nos casos difíceis o aplicador comumente está diante de uma omissão, ou mesmo de uma importante controvérsia a respeito de princípios e valores constitucionais. Um conflito de princípios é comumente visto. No caso do exemplo, dar grande ênfase ao valor que manda proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato, esquecendo-se do outro, conduz a uma decisão no sentido de que o condenado, mas com possibilidade de recurso, não pode ser candidato.

Já se a opção for dar grande valor ao princípio segundo o qual ninguém é considerado culpado senão depois de sentença transitada em julgado, um princípio que determina a segurança jurídica e protege o indivíduo da arbitrariedade estatal, a solução será exatamente em sentido inverso: autoriza-se a candidatura, pois, apesar da vida pregressa, com o julgamento dos recursos pendentes pode-se provar inocência. E até lá o candidato é considerado inocente e como tal deve ser tratado.

Como decidir no conflito de princípios? Deve-se ao iluminismo a racionalidade. O Direito deve a Max Weber e à sua “ação racional”, bem como à sua teoria do poder legal e burocrático, muito de sua racionalidade (vide a obra de Max Weber chamada “A Política como Vocação”). A decisão, no conflito de princípios, assim, deverá ser RACIONAL. Quanto mais racional for a solução, maior será a sua legitimidade. Mas como justificar a racionalidade nos casos difíceis, de conflito de princípios?

Esta questão não é fácil e ainda encontra-se aberta para uma solução definitiva. QUEM TIVER A RESPOSTA, PUBLIQUE UM LIVRO E SERÁ UM IMORTAL. Inicialmente, é preciso observar que há casos em que o choque é tão intenso, tão intenso, porque os princípios em choque tem o mesmo peso, que nenhum deles pode ser preterido. Aqui a solução implica numa decisão política.

Nesse caso é preciso fazer escolhas, decidindo o que é bom para a sociedade, já que a solução, obrigatoriamente, implicará no sacrifício maior de um ou outro princípio. Mas quem fará essa escolha? Nesse tipo de conflito o dador de leis (legislativo) deverá fazer a escolha política. O Judiciário não pode fazê-la, sob pena de usurpação do legislativo e da própria soberania popular.

 

 

Esse argumento foi usado em 2006, quando Promotores Eleitorais de todo o País impugnaram candidaturas de pessoas com “ficha suja”. As impugnações foram julgadas improcedentes dentre outros motivos porque havia uma omissão constitucional que somente poderia ser suprida pelo legislador, não bastando a ponderação de princípios constitucionais por se tratar de um caso de choque intenso. Naquela época não estava em vigor a Lei Complementar n. 135 (Lei da Ficha Limpa).

Mas a questão não é tão simples, pois quem dirá que se está diante de um caso de choque intenso, com valores com mesmo peso. O Juiz deverá dizer? E se ele pensar que não, que o choque não é tão intenso, que na ótica dele um princípio prepondera sobre o outro? Enfim, teoricamente é muito simples, mas na prática ...

Por outro lado, há situações em que o choque não é tão intenso, havendo uma ligeira vantagem de um princípio sobre o outro. A solução, então, passa a ser aquela mais próxima do princípio preponderante. Entretanto, ainda fica a dúvida: o princípio menor, pode-se sacrificá-lo totalmente? E se não for necessário sacrificá-lo integralmente para se resolver o conflito? Ainda assim está autorizada sua morte? A solução encontrada é adequada?

O pior é que, mesmo nesses casos, onde um princípio tem preponderância, outros problemas são verificados. Alguns deles: a decisão implica uma escolha? Essa escolha é política? Se for política, então é tarefa do legislador solucionar a questão. A escolha é técnica, racional jurídica? Quais são os critérios dessa racionalidade? Valores morais são decisivos nessa escolha? Em que medida? Argumentos pragmáticos e éticos ajudam a decidir?

Carl Schmitt, Ernst Forsthoff, Habermas e Schilink opõe forte objeção à possibilidade de ponderação de princípios, como fórmula de decisão em casos de conflitos de princípios. Habermas impugna a ponderação, “porque para isso faltam critérios racionais”. Diz que deve efetivar-se “ou arbitrariamente ou irrefletidamente, segundo modelos e ordens hierárquicos acostumados”. Ou, ainda, que o exame “da proporcionalidade em sentido em restrito ... em último lugar somente a subjetividade do examinador faz valer-se” e que “nas operações de valoração e de ponderação do exame da proporcionalidade em sentido estrito ... em último lugar só decisionisticamente” podem ser “prestadas” (HABERMAS aput ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 137).

Traduzindo essas palavras difíceis aí para a linguagem popular: na ponderação de princípios que estão em choque, em última instância a subjetividade do examinador é decisiva. Aquilo que o Juiz, Ministro, Promotor de Justiça, Advogado, Jurista pensa, seus valores, sua história de vida, sua formação, sua cultura, suas leituras, influências, sua moral, etc., ao final será decisivo para o julgamento.

Assim, seguindo Habermas, Carl Schmitt, Ernst Forsthoff e Schilink, um “moralista” será contra a união homoafetiva (de homossexuais). Num conflito entre a “moralidade” pública, defendida por aqueles que pregam pela proibição dessa relação em defesa da família, inclusive por motivos religiosos, e a liberdade de qualquer pessoa, livre para unir-se com quem quiser e não ter prejuízos com isso no rompimento da relação e nos casos de herança, o “moralista” sempre fará uma ponderação de princípios que conduzirá a decisão para a proibição da união homossexual. Já um juiz liberal ou homossexual conduzirá a decisão para outro norte. O fator decisivo, assim, será a subjetividade do tomador da decisão, a qual não pode ser controlada, perdendo o Direito a racionalidade tão carente a Max Weber.

 

 

Quando o Direito perde sua racionalidade e passa a depender mais de juízos de valor do tomador da decisão, abre-se duas possibilidade: a) ou se entrega a decisão para o dador de leis (legislador), que fará a escolha política, a qual após será aplicada pelo julgador através de simples subsunção (solução que está de acordo com a Democracia); b) ou se instala a insegurança jurídica, já que cada conflito de princípios será decidida conforme os valores (moral) de quem tomará a decisão, ressaltando-se que, mudando-se juiz, a decisão também pode ser mudada, já que as pessoas, numa sociedade complexa, não compartilham dos mesmos valores (Habermas), embora haja valores que são compartilhados por todos. Pior, a Democracia estará em risco, pois a decisão nem sempre estará conforme a vontade geral.

Robert Alexy encontrou um modo de solucionar o conflito, criando uma fórmula racional (tecnologia) para resolvê-lo; uma fórmula que pode ser aplicada a todos os casos, geral e abstrata, através da qual a racionalidade é valorizada, legitimando a decisão. Robert Alexy, com sua teoria, sustenta a possibilidade de ponderação de princípios pelo aplicador do Direito, sem necessidade de socorro ao legislador, teoria que satisfaz também os anseios da Democracia.

Alexy inspirou-se na sentença do Tribunal Constitucional Alemão, conhecida como sentença-Lüth, do ano de 1958, através da qual desenvolveu uma tecnologia, uma racionalidade para a solução dessa espécie de conflitos. Essa teoria tem servido de referência, pois almeja a racionalidade, afasta a arbitrariedade do julgador e com isso satisfaz a Democracia.

A teoria de Alexy é interessante e numa próxima publicação será explicada.

 

Por José Roberto Moreira

Promotor de Justiça

 

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