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Entre Ecos e Vozes: Um Concerto de Resistências Femininas em Cinco Cenas

Para explorar a força e a diversidade das vozes femininas na literatura contemporânea, proponho um encontro literário em cinco cenas
04/06/2025 - 23:01
Por Cleonice Alves Lopes
Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes é poeta, escritora, mediadora de leitura, professora e mestra em Letras. A escrita e a leitura de poemas e contos são algumas das atividades literárias com as quais é comprometida, considerando-as também, atividades terapêuticas que a tem salvado em tempos de céu cinzento. Possui poemas e contos publicados em coletâneas e antologias com o coletivo Mulherio das Letras, tendo, inclusive, organizado uma Coletânea de contos em 2018 com o selo do movimento.


Para explorar a força e a diversidade das vozes femininas na literatura contemporânea, proponho um encontro literário em cinco cenas. Ao invés de uma análise tradicional, busco dar vida às autoras e personagens já ilustradas em textos anteriores, permitindo que suas histórias se entrelacem e ressoem. Cada cena funciona como um microcosmo, revelando as dores, resistências e a potência criativa que ecoam da cozinha de Mrs. Sweet ao calçadão da periferia, do silêncio eloquente de Yeonghye à memória ancestral de Tituba. Através dessa estrutura, tento não apenas falar sobre essas vozes, mas dar-lhes espaço para que se manifestem em toda a sua complexidade e urgência.
 
CENA 1: A COZINHA DE MRS. SWEET – O CHÁ AMARGO DA DESILUSÃO
O tilintar da colher de prata contra a porcelana da xícara corta o silêncio da cozinha. Não é um som de conforto, mas de raiva contida. Mrs. Sweet, com os olhos fixos no líquido escuro, murmura: "Então é isso — See Now Then. Agora. Depois." Sua voz carrega o peso de um tempo que se esfacelou, que a atravessa como cacos de vidro. "Meu marido me odeia. Meus filhos não me veem. Vocês, o que entendem disso?" 
A narradora surge na penumbra da cozinha: Entendemos, Mrs. Sweet, que seu tempo não é uma linha reta, mas um espelho estilhaçado. Que sua linguagem tem a força de dobrar esse espelho e nos mostrar não apenas o reflexo, mas a rachadura, a fratura exposta. Ao fundo, sussurros de Barad e Hutcheon, teóricas que desconstroem as noções de tempo e narrativa. Jamaica Kincaid, com sua escrita afiada, desmantela o tempo do patriarcado, esse tempo que aprisiona as mulheres em um "agora" eterno de submissão.
Bell hooks, com sua presença marcante no batente da porta, completa o quadro: E o lar, Mrs. Sweet, esse lar que deveria ser refúgio, se transformou em campo de batalha. O patriarcado veste o pijama do marido e põe as crianças na cama com desprezo. A doçura do lar se esvai, deixando apenas o gosto amargo da opressão.
 
CENA 2: UMA MESA EM SEUL – O SILÊNCIO QUE GRITA
Em Seul, a luz tênue de uma mesa ilumina as mãos de Yeonghye, que corta um damasco seco com precisão cirúrgica. Sua voz, quase um sussurro, ecoa no ar: "E se o corpo recusasse? E se a mulher parasse de comer, de falar, de agradar?" 
A narradora se aproxima, observando a quietude de Yeonghye à la Han Kang: A mulher que se transforma em vegetal – não por fraqueza, mas por rebelião. Seu silêncio grita nos ouvidos daqueles que se recusam a ouvir. Seu jejum é um grito ético, quase uma performance artística que desafia as convenções. O Nobel te reconheceu, Han Kang, mas será que entendeu a profundidade desse silêncio? Você recusa o espetáculo da dor, mas o impõe a que lê, nos fazendo engolir a violência como se fosse arroz frio, sem tempero, sem vida.
 
CENA 3: O CLUBE DE LEITURA – A FORÇA DA IMPERFEIÇÃO
Em uma sala cheia de livros, Carla Madeira segura um exemplar com carinho. Seus olhos brilham com intensidade ao dizer: "As mulheres que escrevo vivem, respiram, sangram. Sofrem sim, mas também tramam, escondem, odeiam. Não são vítimas planas, unidimensionais – são humanas, complexas, imperfeitas." 
A narradora sorri, cúmplice: Você recusa o rótulo de 'literatura feminina', Carla, e talvez por isso acerte tão fundo em nossos corações. Seus personagens caminham na corda bamba entre a delicadeza e o abismo, entre o amor e a crueldade. A narrativa flui sem ornamentos, mas com a precisão de uma cirurgiã. Você conhece o corte da navalha emocional, a dor que dilacera a alma.
 
CENA 4: O CALÇADÃO – VOZES QUE ROMPEM O SILÊNCIO
No calor do calçadão de uma periferia invisível aos olhos da elite, as Vozes da Margem se erguem em uníssono, mas sem formar um coro homogêneo. Cada voz carrega sua própria história, sua própria dor, sua própria força: "Não queremos piedade, não queremos esmolas. Queremos escuta, queremos reconhecimento. Não estamos à margem, não somos apêndices da sociedade – estamos no centro que vocês se recusam a ver." 
A narradora caminha entre elas, absorvendo cada palavra, cada gesto: A 'perifobia' não é apenas medo da pobreza, mas medo da verdade, medo de que o espelho se quebre e revele quem realmente somos enquanto sociedade. Lília nos apresenta uma literatura que pulsa nas bordas, que carrega complexidade, não carência, tampouco vitimismo. O Brasil invisível, o Brasil que resiste, é feito de vozes que escrevem, falam e lutam por seu espaço. 
 
CENA 5: O FEITIÇO DE TITUBA – MEMÓRIA QUE RESISTE
Em meio à fumaça de ervas secas, Tituba ergue um feitiço ancestral. Seus olhos, sábios e sofridos, fixam-se em Maryse Condé, que a observa com um sorriso sarcástico. Tituba declara: "Me tornaram bruxa, me silenciaram, me apagaram da história. E eu? Eu me fiz memória, eu resisti no coração daqueles que não se esqueceram." 
Condé responde, com a voz carregada de ironia: Eu a ressuscitei, Tituba, para que você contasse o que a história oficial apagou. Você não é símbolo, não é alegoria – é carne, alma, revolta. Sua voz ecoa através dos séculos, lembrando-nos que o colonialismo não roubou apenas terras, mas também narrativas.
 
O CONCERTO DAS VOZES VIVAS
As vozes de Mrs. Sweet, Yeonghye, Carla Madeira, de Perifobia e Tituba se unem em um concerto vibrante de resistências femininas. Não são vozes isoladas, mas parte de uma sinfonia que ecoa através do tempo e do espaço.
A narradora conclui, com um chamado à ação: Todas essas autoras – Jamaica, Han, Carla, Lília e Maryse, – não escrevem sobre as mulheres, elas escrevem com as mulheres. Com o corpo, com a memória, com a raiva, com o afeto. Não querem ser lidas com reverência acadêmica, mas ouvidas com a urgência de quem ouve um grito de 'chega' pela primeira vez – e também pela última. 
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