Casa de not%c3%adcias   1144 x 150

LEIA COMIGO

O peso da tradição em Fique Comigo, de Ayòbámi Adébáyò

A trama é uma epopeia sobre o peso da tradição e a resiliência do espírito humano, na qual a autora, com formação em Literatura e Escrita Criativa, nos transporta para a intimidade de um casamento em crise. 
18/08/2025 - 17:02
Por Cleonice Alves Lopes
Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes é poeta, escritora, mediadora de leitura, professora e mestra em Letras. A escrita e a leitura de poemas e contos são algumas das atividades literárias com as quais é comprometida, considerando-as também, atividades terapêuticas que a tem salvado em tempos de céu cinzento. Possui poemas e contos publicados em coletâneas e antologias com o coletivo Mulherio das Letras, tendo, inclusive, organizado uma Coletânea de contos em 2018 com o selo do movimento.


Em uma Nigéria em ebulição nos anos 80, Ayòbámi Adébáyò nos convida a testemunhar o desmoronamento de um amor em seu romance de estreia, Fique Comigo. A trama é uma epopeia sobre o peso da tradição e a resiliência do espírito humano, na qual a autora, com formação em Literatura e Escrita Criativa, nos transporta para a intimidade de um casamento em crise. Para aprofundar essa análise, é possível empregar diversas abordagens teóricas, que desvendam as camadas de significado por trás da história.
A narrativa, que nos lança de volta ao passado a partir de um evento em 2008, se desenrola principalmente na Nigéria das décadas de 1980 e 1990. Este não é um mero pano de fundo. É uma época de intensa instabilidade política no país, marcada por golpes militares e turbulências sociais, que serve de espelho para a crise interna dos protagonistas. A nação em convulsão reflete a turbulência do casamento de Yejide e Akin, um casal que personifica a modernidade ao se comprometer com a monogamia, desafiando os costumes iorubás. A análise desse contexto sob a ótica dos Estudos Culturais é uma possibilidade interessante que permite examinar as dinâmicas sociais, tradições e hierarquias familiares que atuam como forças poderosas, moldando a vida dos personagens.
A felicidade deles, no entanto, é abalada pela infertilidade. A pressão social e familiar, personificada pela voz opressora da mãe de Akin, Moomi, se torna uma personagem à parte. A ausência de um filho transforma o amor deles em um campo minado, onde Yejide tenta de tudo para cumprir o que via como sendo a sua única e mais importante função.
Essa temática ressoa com a obra de outras autoras nigerianas, como Buchi Emecheta em As Alegrias da Maternidade, que dissecou o paradoxo do papel materno em uma sociedade patriarcal. A própria Paulina Chiziane, em Niketche: uma história de poligamia, já havia explorado a jornada de uma mulher confrontando as normas do matrimônio, bem como Flora Nwapa, em Efuru, já havia explorado a busca de sentido fora do matrimônio, ecoando o desespero de Yejide.
Uma análise sob o viés da teoria feminista e Pós-colonial é uma excelente possibilidade para entender a crítica de Adébáyò ao patriarcado. A personagem é confrontada com a cruel verdade cultural, expressa de forma brutal por Moomi: As mulheres fabricam crianças, e se você não consegue fazer isso, não passa de um homem.
Yejide é uma personagem de múltiplas camadas, cuja psicologia complexa pode ser analisada à luz da Psicanálise Literária. Sua complexidade pode ser vista no conflito entre o que ela deseja e o que a sociedade espera dela. É apresentada como uma mulher de elegância natural e postura impecável que se convence de que o silêncio é a virtude de uma boa esposa, mas, ao mesmo tempo, percebe que as maiores mentiras são aquelas que contamos a nós mesmas.
A busca desesperada por uma criança pode ser vista não apenas como uma resposta à pressão social, mas também como um profundo desejo de preencher um vazio interno, uma tentativa de encontrar propósito e identidade fora do casamento. Sua angústia, o luto não processado e a determinação em sua busca são um campo fértil para análise para quem se interessa pela psicologia humana por trás das palavras.
A tensão atinge seu auge quando Akin cede, aceitando uma segunda esposa, Funmi. Ele não é um vilão, mas um homem dividido, preso entre seu amor por Yejide e o peso das expectativas familiares. Sua perspectiva nos revela que ele se irritava com as visitas constantes da família, que o pressionavam sobre a falta de um herdeiro. Sua decisão de casar-se com Funmi é uma tentativa de aplacar a família, mas afeta profundamente Yejide. A construção literária nos revela que ele não tinha muito em comum com Funmi e relutava em aceitá-la em sua casa, sofrendo e causando sofrimento com suas escolhas.
Funmi, a segunda esposa, é descrita pela perspectiva de Yejide como uma intrusa que se senta no banco da frente do carro de Akin e se muda para a casa deles. Sua presença é um catalisador para a dor e o desespero que sente, mas também para o sofrimento de Akin, que se vê preso a um casamento que não queria.
A narrativa, construída com maestria em primeira pessoa e alternando as vozes dos protagonistas, permite que quem lê enxergue os dois lados da mesma moeda. Uma abordagem de Narratologia, de crucial relevância para a análise deste romance, nos mostra como essa técnica de alternância de pontos de vista subverte a ideia de uma única pessoa como heroína ou vilã.
Essa narrativa polifônica visa impedir julgamentos apressados e possibilita aprofundar a compreensão das motivações e dores de cada personagem. É essa escolha narrativa que demonstra que o fardo da tradição é pesado demais para que apenas uma pessoa o carregue e que, se o carregamos por muito tempo, até mesmo o amor se verga, racha, fica prestes a se despedaçar, e às vezes se despedaça de fato.
A versatilidade de Adébáyò não é por acaso. Com um mestrado em Literatura Inglesa e outro em Escrita Criativa pela prestigiada Universidade de East Anglia, a mesma que formou Kazuo Ishiguro, escritor nipo-britânico galardoado com o Nobel de Literatura em 2017, a autora combina um profundo conhecimento acadêmico com um talento narrativo inato. Influenciada por Chimamanda Ngozi Adichie, com quem fez um workshop de escrita, Adébáyò dominou a arte de contar histórias que levam a questionar o que realmente significa o título do livro, se uma súplica por amor, por permanência, ou por um milagre. 
A releitura desse romance, após três anos do primeiro contato com ele, ainda me possibilita pensar que, às vezes, as pessoas têm filhas(os) porque querem deixar alguém que possa explicar ao mundo quem eram depois que morrem. Essa é a chave que destranca uma das portas mais profundas do romance. Talvez a busca desesperada pela prole não seja apenas para cumprir uma tradição, mas para garantir que a própria existência não seja esquecida. Nesse sentido, as(os) filhas(os) se tornam quem narra nossa história, quem guarda nossa memória. O desespero de Yejide e a angústia de Akin para gerar um herdeiro são, portanto, a manifestação do medo de que suas vidas, suas lutas e seus amores se percam no tempo, sem que haja alguém para explicá-los ao mundo depois que eles se forem. A história de ambos se torna, assim, um eco universal sobre a necessidade de deixar um legado, de garantir que a nossa voz ressoe para além da nossa própria existência.
 
Cleonice Alves Lopes
Anuncio gene 2