Há mais de 100 anos, a jornalista e deputada alemã Clara Zetkin (1857-1933) propôs, no II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em 1910, em Copenhagen (Dinamarca), que se consagrasse uma data para celebrar as lutas e reivindicações das mulheres trabalhadoras em todo o mundo. Na resolução aprovada não se fez referência a uma data específica.
Mas foi a partir dali que nasceria o 8 de março, comemorado como Dia Internacional da Mulher em praticamente todos os países do mundo. A origem dessa celebração é, porém, cercada por controvérsias e histórias pouco esclarecedoras, como se verá a seguir.
No Brasil, e em outros países latino-americanos, espalhou-se a informação de que o 8 de março havia sido sugerido como forma de homenagear operárias têxteis mortas num incêndio em Nova Iorque, supostamente em 1908. Alguns textos espalhados pela internet (des)informam que tal evento teria ocorrido em 1857. Entretanto, registros históricos revisados por diversas autoras não corroboram, definitivamente, tais informações.
INCÊNDIO
Em “As Origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres” (Editora Expressão Popular/SempreViva Organização Feminista, São Paulo, 2010), a pesquisadora espanhola Ana Isabel Álvarez González esclarece, com base em ampla bibliografia, sobre o incêndio ocorrido numa confecção em Nova York, nos Estados Unidos, e desvenda em definitivo a criação do “mito do 8 de março”. Diz a pesquisadora:
O fato que nos interessa não ocorreu em nenhuma das datas que foram se embaralhando. Aconteceu em 25 de março de 1911, a fábrica se chamava The Triangle Shirtwaist Company e se localizava no Lower East Side [região sudeste] da cidade de Nova York.¹¹ (p. 32)
González esclarece inclusive que: as “historiadoras Liliane Kandel e François Picq afirmam que o mito que situa a manifestação no ano 1857 foi criado em 1955 para eliminar o caráter comunista que mais tarde teria adquirido o Dia Internacional da Mulher. A data de 1857, segundo a versão dessas autoras, foi escolhida por ser o ano de nascimento de Clara Zetkin, a promotora da comemoração em escala internacional de um dia dedicado à reivindicação dos direitos da mulher. Liliane Kandel e F. Picq, ´Le mythe des origines. A propos de la Journée Internacionale des Femmes´. La Revue 12, (Automne, 1982), pp. 67-80.”
A pesquisadora espanhola desfaz também outra inverdade, apesar de ao longo do texto destacar a importância do que ocorreu em Nova York para o desenvolvimento do movimento operário estadunidense:
Apesar de que o mito conta que as empregadas da fábrica incendiada utilizavam uniformes de cor lilás, posteriormente adotado como a cor feminista por excelência, as fontes consultadas para determinar as condições de trabalho da Triangle não só não fazem menção a nenhuma cor, como nem sequer mencionam que estas operárias utilizassem uniformes. (p. 35, nota de rodapé 14)
VOTO FEMININO
No mesmo sentido, a historiadora canadense Renée Côté, em extensa pesquisa em arquivos de várias universidades norte-americanas e europeias, jamais encontrou prova da existência de uma manifestação com as características narradas, em “nenhuma cidade dos Estados Unidos, nem em 1857 nem em 1908.”
Ao propor a criação desse dia, a cada ano, no mês de março, Clara Zetkin não sugeriu uma data precisa. Àquela época, o incremento da participação das mulheres na economia, com a exploração brutal do trabalho, fez também com que as lutas pela regulação de direitos - inclusive pelo direito ao voto feminino -, ganhassem centralidade, em especial nos debates entre as feministas socialistas alemãs.
Em “Clara Zetkin: vida e obra” (Editora Expressão Popular, SP, 2003, tradução de Mário Corbisier e Ana Corbisier), o historiador e professor universitário francês Gilbert Badia narra que a “resolução que determinava, por proposta de Clara, a organização, a cada ano, no mês de março, de um dia internacional das mulheres, deixava claro que ´as mulheres socialistas de todos os países devem organizá-lo em acordo com os organismos políticos e sindicais´ e que ´o objetivo imediato era a obtenção do direito de voto´.”
REVOLUÇÃO
No ano seguinte (1911) à proposição de Zetkin, dezenas de reuniões e manifestações foram realizadas em diversas cidades da Alemanha, no dia 19 de março, reunindo milhares de mulheres. O mesmo ocorreu em 1912 e 1913, em muitos países de vários continentes. Em 1914, às vésperas da eclosão da primeira guerra mundial, o Dia Internacional da Mulher foi dedicado na Alemanha a denunciar “a corrida armamentista e a propaganda bélica”.
O fato que, em definitivo, consagrou a data teve lugar na Rússia czarista. No dia 23 de fevereiro de 1917 pelo calendário russo então vigente (Juliano), que correspondia ao 8 de março no calendário ocidental (Gregoriano), mulheres tecelãs começaram uma greve, que contou com o apoio de outras categorias de trabalhadores e mudou completamente os rumos da história daquele país. Poucos meses depois, a Revolução Socialista de Outubro de 1917 traria inegáveis transformações em todo o mundo. Deste modo, segundo Ana Isabel Á. González,
Os acontecimentos de 23 de fevereiro de 1917 são importantes, não só porque deram origem à revolução e porque foram protagonizados por mulheres, mas também porque, como tudo parece apontar, esses acontecimentos foram os que fizeram que o Dia Internacional da Mulher passasse a ser comemorado, sem mais alterações de data até hoje, no dia 8 de março. (p. 128)
No período do pós-guerra, a crescente participação das mulheres nos sindicatos e movimentos sociais resultou, ainda, na conquista do direito de voto feminino na Alemanha e no Reino Unido, em 1918; e nos Estados Unidos, em 1920.
EMANCIPADOR
Em extensa análise sobre os rumos dos acontecimentos históricos na URSS e na Europa, González conclui que:
O Dia Internacional das Mulheres foi se esvaziando, assim, do conteúdo emancipador que teve em seu início, ao ser “sequestrado” pelos homens no poder, que lhe davam o significado mais conveniente naquele momento. O que nunca se perdeu, entretanto, ao menos nessa primeira etapa de sua comemoração, que situamos até o final da Segunda Guerra Mundial, foi seu caráter de festa comunista. (p. 144)
Num ensaio publicado em 2001, sob o título “8 de Março: Conquistas e Controvérsias” (Estudos Feministas 2/2001, p. 601-607), a socióloga e ex-senadora Eva Alterman Blay também derruba o mito da ligação do 8 de maço com o incêndio na fábrica nos EUA. Esse texto tem, porém, algumas imprecisões e se baseia em outras referências bibliográficas que não aquelas que aqui citamos.
No Brasil, no início da década de 60, houve uma tentativa de tornar lei o reconhecimento do 8 de março como Dia Internacional da Mulher. O então deputado pelo Estado da Guanabara (hoje Rio de Janeiro), Benjamin Farah, apresentou o Projeto de Lei nº 2.782, de 3 de março de 1961.
Além da justificativa, o parlamentar anexou ao texto do projeto mensagem assinada por várias mulheres reivindicando a proposição. Entre elas, Adalgisa Nery (deputa e jornalista), Ana Montenegro (poeta, jornalista e militante do PCB), Aidê de Almeida Rodrigues (dirigente sindical), Branca Fialho (educadora), Maria Augusta Tibiriça Miranda (médica), Yara Lopes Vargas (jornalista), Nieta Campos da Paz (militante do PCB). O projeto não chegou a ser votado e foi arquivado.
ONU MULHERES
A partir de 1975, Ano Internacional da Mulher declarado pela Organização das Nações Unidas, as comemorações do 8 de março ganharam novo fôlego com o avanço do movimento feminista.
Em 1976, foi criado o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (em inglês: United Nations Development Fund for Women - Unifem), órgão com a missão de prover assistência técnica e financeira a programas inovadores e estratégias que contribuíssem para assegurar os direitos das mulheres, sua participação na política e sua segurança econômica. Em julho de 2010, a Assembleia Geral da ONU instituiu a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), que incorporou o Unifem.
ONDA FEMINISTA
Em dezembro de 1977, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução nº 32/142 exortando os Estados-Membros a proclamarem, de acordo com suas tradições históricas e nacionais, um dia do ano como Dia das Nações Unidas para os Direitos da Mulher e da Paz Internacional. Apesar de a resolução não estipular uma data, na maioria dos países o 8 de março já se consagrara por sua relevância histórica e política.
Retomar assim o caráter transformador desse dia de luta e ressignificar o sentido da solidariedade internacional é fundamental. Particularmente quando novas gerações de mulheres se mobilizam, ocupam as ruas e os espaços de poder nos quatro cantos do planeta, na resistência a governos autoritários, a retrocessos e à perda ou negação de direitos.
Maria Cecília Ferreira é advogada, mestra em Ciências Sociais, especialista em Políticas Públicas. Foi vereadora e Secretária de Políticas para Mulheres do Município de Toledo/PR.