Jamaica Kincaid, escritora antilhana cuja obra é amplamente reconhecida por sua crítica ao colonialismo e às dinâmicas de poder racial e de gênero, apresenta em Agora Veja Então (See Now Then, 2013) uma narrativa que examina a dissolução de um casamento e os efeitos do tempo sobre as relações familiares. A obra acompanha a trajetória de Mr. e Mrs. Sweet, cujas interações são marcadas por ressentimentos, infidelidade e um progressivo distanciamento emocional. A estrutura fragmentada da narrativa, caracterizada por uma alternância entre passado, presente e futuro, desafia a linearidade tradicional e reforça a complexidade da experiência temporal dos personagens.
No âmbito temático, Kincaid retoma questões recorrentes em sua produção literária, como identidade, maternidade e os impactos do colonialismo, que já foram analisados por estudiosas como Ferguson (1994) e Paravisini-Gebert (1999). O estilo da autora, marcado por uma prosa densa, repetições e uma abordagem introspectiva, contribui para a atmosfera psicológica da obra e evidencia a subjetividade e a percepção fragmentada da protagonista. A escrita de Kincaid, nesse sentido, pode ser compreendida dentro do viés do feminismo pós-colonial, que busca desestabilizar narrativas hegemônicas e dar visibilidade às experiências das mulheres racializadas (Mohanty, 1988).
Ao adotar uma perspectiva feminista decolonial, é possível interpretar Agora Veja Então como uma crítica às estruturas patriarcais e raciais que continuam a moldar as experiências das mulheres negras no contexto da diáspora. Como aponta Lugones (2014), o sistema moderno/colonial de gênero impôs uma lógica hierárquica que subordinou as mulheres racializadas a uma dupla marginalização: como sujeitas do patriarcado e como corpos racializados dentro da colonialidade do poder. A protagonista, Mrs. Sweet, uma mulher negra do Caribe que vive em um espaço predominantemente branco e burguês, encarna essa interseccionalidade da opressão, sendo constantemente diminuída dentro de seu próprio lar.
Além disso, a estrutura narrativa da obra também pode ser lida sob a ótica da crítica feminista pós-colonial, uma vez que a não linearidade da história desafia a concepção eurocêntrica do tempo como progressivo e teleológico. Como argumenta Spivak (1988), as epistemologias coloniais impuseram uma lógica de conhecimento que desconsidera as formas não ocidentais de compreensão do mundo. Kincaid, ao entrelaçar temporalidades distintas, não apenas reconstrói a experiência subjetiva da protagonista, mas também subverte a narrativa tradicional, dando centralidade a uma voz que historicamente foi silenciada.
Outro ponto fundamental na análise feminista da obra é a forma como Kincaid aborda o espaço doméstico. Embora tradicionalmente o lar seja representado como um lugar de segurança e afeto, para Mrs. Sweet ele se torna um espaço de confinamento e opressão. Esse aspecto dialoga com as críticas de Mohanty (1988) ao feminismo ocidental, que frequentemente universaliza as experiências femininas sem considerar as particularidades das mulheres racializadas e suas diferentes relações com a estrutura patriarcal. O casamento de Mrs. Sweet não é apenas uma união conjugal problemática, mas também um reflexo das continuidades do colonialismo, onde as hierarquias de raça e gênero são reproduzidas dentro da esfera privada.
Conforme exposto, Agora Veja Então não apenas reafirma a importância de Jamaica Kincaid na literatura contemporânea, mas também contribui para os debates do feminismo decolonial e pós-colonial ao expor as intersecções entre colonialismo, patriarcado e subjetividade. A obra, ao dar voz a uma protagonista que transita entre temporalidades e espaços de opressão, evidencia a urgência de novas narrativas que desafiem as epistemologias coloniais e ofereçam perspectivas alternativas para a experiência das mulheres negras na diáspora.
Referências
Ferguson, Moira (1994). Jamaica Kincaid: Where the Land Meets the Body. University of Virginia Press.
Lugones, Maria (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, 22(3), 935-952.
Mignolo, W. D. (2011). The Darker Side of Western Modernity: Global Futures, Decolonial Options. Duke University Press.
Mohanty, Chandra Talpade (1988). Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses. Feminist Review, 30, 61-88.
Paravisini-Gebert, Lisabeth (1999). Jamaica Kincaid: A Critical Companion. Greenwood Press.
Spivak, Gayatri Chakravorty (1988). Can the Subaltern Speak? In Nelson, Cary & Grossberg, Lawrence (Eds.), Marxism and the Interpretation of Culture. University of Illinois Press.