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Algumas considerações sobre Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salém, de Maryse Condé

A leitura deste livro de Maryse Condé exige que quem lê faça uma imersão na história ao ponto de reimaginar a vida de Tituba, uma mulher negra escravizada que foi uma das primeiras acusadas nos julgamentos de bruxas de Salém, em 1692 
24/01/2025 - 19:24
Por Cleonice Alves Lopes
Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes é poeta, escritora, mediadora de leitura, professora e mestra em Letras. A escrita e a leitura de poemas e contos são algumas das atividades literárias com as quais é comprometida, considerando-as também, atividades terapêuticas que a tem salvado em tempos de céu cinzento. Possui poemas e contos publicados em coletâneas e antologias com o coletivo Mulherio das Letras, tendo, inclusive, organizado uma Coletânea de contos em 2018 com o selo do movimento.


Para iniciarmos nosso contato aqui, trago para vocês algumas considerações sobre o livro "Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salém", de Maryse Condé. Esse livro foi escolhido para leitura em novembro de 2024 pelo clube de leitura Leia Mulheres Toledo. Na roda de conversa sobre a narrativa surgiram muitas inquietações e chegamos a algumas constatações interessantes por meio das trocas literárias. 
A leitura deste livro de Maryse Condé exige que quem lê faça uma imersão na história ao ponto de reimaginar a vida de Tituba, uma mulher negra escravizada que foi uma das primeiras acusadas nos julgamentos de bruxas de Salém, em 1692. O romance histórico é apresentado em primeira pessoa, dando à personagem uma voz poderosa para contar sua própria história, desde seu nascimento até sua morte, mesclando realidade histórica e ficção com elementos de espiritualidade e crítica social.
Tituba nasce em Barbados, filha de uma mulher africana escravizada e estuprada por um marinheiro branco. Após a morte violenta de sua mãe, Tituba é criada por uma mulher chamada Man Yaya, que lhe ensina práticas de cura e espiritualidade ancestral. Já adulta, ela se apaixona por John Indian, um homem negro que a convence a seguir para a América em busca de uma vida melhor. Lá, ela se torna escrava do reverendo Samuel Parris e de sua família em Salém, na colônia de Massachusetts.
Na casa dos Parris, Tituba entra em contato com o puritanismo repressivo e percebe o profundo racismo e misoginia da sociedade. As tensões crescem quando Tituba é acusada de bruxaria após ser vista ensinando rituais e contando histórias espirituais para as jovens da família, incluindo Abigail Williams e Betty Parris. Essas meninas, influenciadas pelo fanatismo religioso e pelas pressões sociais, iniciam uma histeria coletiva que leva aos famosos julgamentos de Salém.
Tituba é presa, torturada e levada a julgamento. Durante seu cativeiro, ela reflete sobre seu passado, suas dores e seus sonhos. Ao mesmo tempo, ela se mantém fiel às suas raízes espirituais, buscando força em suas tradições e em suas conexões com o mundo dos espíritos. Apesar das injustiças que enfrenta, Tituba não se considera uma vítima passiva. Ao contrário, ela luta contra as imposições de uma sociedade opressora, mantendo viva sua identidade e dignidade.
Após o julgamento, Tituba é libertada e retorna a Barbados, onde continua praticando suas tradições espirituais e ajudando outras mulheres marginalizadas. No final da narrativa, Tituba abraça seu destino como um símbolo de resistência, justiça e luta contra as forças que tentam silenciar mulheres negras e espiritualmente livres.
Maryse Condé aborda diversos temas centrais que dialogam com questões sociais históricas e contemporâneas. Entre eles, destaca-se o racismo e o colonialismo, que permeiam a trajetória de Tituba desde seu nascimento até o julgamento em Salém. A autora explora como o sistema colonial europeu impôs desigualdades raciais, desumanizando os povos africanos e indígenas, enquanto a escravidão se consolidava como uma prática legitimada pelas estruturas de poder. O racismo é evidenciado tanto nas relações pessoais quanto nas instituições sociais, que reduzem Tituba à condição de propriedade e a marginalizam em todos os aspectos de sua vida.
Outro ponto fundamental é a opressão de gênero, que atravessa a narrativa de forma contundente. Tituba não apenas sofre por ser negra, mas também por ser mulher em uma sociedade patriarcal. Sua voz, seus conhecimentos e sua liberdade são constantemente suprimidos, revelando as dinâmicas de poder que subjugam mulheres, especialmente as que fogem dos padrões impostos. A obra evidencia como a condição feminina é marcada por múltiplas camadas de opressão, sobretudo quando a mulher é pobre, negra e espiritualizada.
Em contrapartida, a resistência cultural e a espiritualidade ancestral aparecem como ferramentas de luta e sobrevivência. Condé retrata a espiritualidade de Tituba como uma herança das tradições africanas e caribenhas, que se opõe à imposição da religião cristã colonizadora. A prática de rituais de cura e conexão com os ancestrais simboliza a força de culturas que, mesmo violentamente reprimidas, permanecem vivas e são fontes de poder e autonomia para os marginalizados.
Além disso, o romance faz uma forte crítica ao fanatismo religioso e às estruturas patriarcais presentes na sociedade puritana. O ambiente de Salém é marcado por um moralismo rígido e pela crença em um cristianismo punitivo, que legitima perseguições e castigos em nome da fé. Esse fanatismo alimenta a histeria coletiva que culmina nos julgamentos das chamadas “bruxas”, funcionando como uma ferramenta de controle social e repressão, principalmente contra mulheres e minorias.
Por fim, a obra expõe a invisibilização das vozes negras na história oficial, resgatando a figura de Tituba, que, nos registros históricos, foi reduzida a uma personagem secundária e estereotipada. Maryse Condé concede à protagonista um espaço de fala e autonomia, reconstruindo sua história a partir de uma perspectiva crítica e humanizadora. Assim, o romance questiona os relatos oficiais, dando visibilidade às experiências e vivências das pessoas marginalizadas, cujas narrativas foram silenciadas ao longo dos séculos. Dessa forma, "Eu, Tituba" torna-se uma obra de resistência e de ressignificação da memória histórica, destacando a importância de dar voz àqueles que foram apagados pelo discurso dominante.
A obra é um marco da literatura pós-colonial, destacando a importância de reescrever a História a partir de perspectivas marginalizadas e silenciadas. Maryse Condé oferece uma narrativa que combina denúncia social, magia e poesia, transformando Tituba em um símbolo de luta e resistência feminina. Somada a esses fatores, a obra desperta a curiosidade de quem está lendo por apresentar um enredo instigante e uma narrativa que só não é mais leve porque a história não permite e os fatos precisam ser contados.
 
 
Cleonice Alves Lopes
 
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