Mergulhamos hoje em uma obra que transcende o estilo da História em Quadrinhos (HQ) para se estabelecer como um ensaio sociológico e feminista de rigor e precisão singulares. A Origem do Mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado, da sueca Liv Strömquist revela-se um manifesto gráfico que desnuda a estratégia milenar de culpabilização do corpo da mulher. Este é o segundo título em HQ a ser explorado pelo Clube de Leitura Leia Mulheres Toledo, reforçando a necessidade de divulgar um gênero que, apesar de sua potência crítica e artística, ainda enfrenta barreiras para ser plenamente difundido no circuito literário. Para melhor assimilação dos argumentos, exploraremos o método analítico da autora, a crítica incisiva à medicalização do desejo e a desconstrução do tabu da menstruação, situando Liv Strömquist ao lado das quadrinistas do Brasil e do mundo que utilizam o meio de expressão para a crítica social.
Para iniciar a análise dos temas propostos, é fundamental observar como a escritora, apoiada em sua formação em Ciências Sociais, utiliza a HQ com a precisão de uma pesquisadora. Sua metodologia aplica a arqueogenealogia, inspirada no trabalho de Michel Foucault, de forma acessível, buscando desenterrar os discursos e as práticas institucionais que, ao longo de séculos, consolidaram o controle e o silenciamento sobre a genitália feminina. Liv Strömquist utiliza o método para mapear a gênese dos tabus e desnaturalizar a vergonha imposta, evidenciando que o domínio sobre o corpo feminino é uma construção histórica e cultural. A seriedade de sua pesquisa se manifesta na vasta bibliografia mobilizada, que vai da Grécia Antiga a pensadores contemporâneos, transformando a arte em um veículo para um denso trabalho de descolonização corporal.
Transpondo a consistência metodológica para a crítica social, o cerne da obra reside na exposição da esquizofrenia social imposta ao corpo da mulher. Liv Strömquist traça a forma como o desejo feminino foi medicalizado e patologizado, remontando ao conceito de histeria e aos métodos absurdos empregados pela medicina para conter a sexualidade da mulher. A autora critica a disparidade de tratamento e estudo entre os órgãos sexuais: enquanto o falo era (e ainda é) um símbolo de poder abertamente estudado e celebrado na cultura e na arquitetura, a vulva foi reduzida a uma abstração, muitas vezes mal representada em compêndios científicos, refletindo desinteresse e apagamento. O tabu da menstruação, que transformou o ciclo menstrual de um possível símbolo sagrado em algumas culturas para um objeto de vergonha e sujeira, é habilmente desvendado como um dispositivo de isolamento e dominação.
A crítica contundente de Liv Strömquist não é isolada. Sua relevância ecoa a importância de outras vozes de mulheres nas graphic novels, tanto no Brasil quanto globalmente. No cenário internacional, ela se integra a autoras que utilizam o quadrinho como crítica social e autobiografia, incluindo a iraniana-francesa Marjane Satrapi (Persépolis), que carrega a dupla designação por ser nascida no Irã e ter adquirido a nacionalidade francesa após o exílio, sublinhando a complexidade de sua identidade e narrativa. Ela soma-se à equatoriana-colombiana Powerpaola (Vírus Tropical), às estadunidenses Alison Bechdel (Fun Home), Cathy Guisewite (Cathy) e Emil Ferris (Minha Coisa Favorita É Monstro), à japonesa Rumiko Takahashi (InuYasha), às francesas Claire Bretécher (Les Frustrés) e Julie Maroh (Azul é a Cor Mais Quente), à italiana Sara Pichelli (Ultimate Spider-Man), à argentina Maltena (Mulheres Alteradas), à egípcia Deena Mohamed (Shubeik Lubeik, Qahera), à sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim (Grama) e à marfinense Marguerite Abouet (Aya de Yopougon). Essas quadrinistas demonstram a potência da arte sequencial para narrativas de grande relevância e profundidade.
Refletindo essa tendência global de crítica em HQ, o movimento se manifesta no Brasil com uma promissora geração de talentos. Lu Cafaggi é um destaque em vendas e crítica por suas Graphic MSP e narrativas de afeto; Bianca Pinheiro explora dilemas existenciais com apelo internacional (Bear); Helô DAngelo se dedica à crítica social, antirracismo e feminismo; Carol Rossetti utiliza o digital para desconstruir padrões de beleza; Mary Cagnin explora medos e traumas na ficção científica; e Jéssica Groke narra o cotidiano com foco na saúde mental. Essas seis expressivas quadrinistas brasileiras demonstram a pluralidade temática e o reconhecimento que a nona arte está conquistando no país, apesar das dificuldades de maior difusão.
Em última análise, A Origem do Mundo é um convite urgente ao letramento corporal e histórico. Ao unir a profundidade da pesquisa acadêmica com a expressividade da arte sequencial, Liv Strömquist não só desmascara o passado de repressão, mas também ilumina o caminho para a compreensão e a autonomia sobre o corpo feminino, colocando a HQ no merecido patamar de ensaio literário e social fundamental para a atualidade.
Por: Cleonice Alves Lopes





