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OPINIÃO

Socorro Acioli: Tramas do (Re)Existir

A Cabeça do Santo e Oração para Desaparecer, não são apenas tramas envolventes; são portais para a compreensão de um Brasil profundo 
16/07/2025 - 15:47
Por Assessoria
Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes

Cleonice Alves Lopes é poeta, escritora, mediadora de leitura, professora e mestra em Letras. A escrita e a leitura de poemas e contos são algumas das atividades literárias com as quais é comprometida, considerando-as também, atividades terapêuticas que a tem salvado em tempos de céu cinzento. Possui poemas e contos publicados em coletâneas e antologias com o coletivo Mulherio das Letras, tendo, inclusive, organizado uma Coletânea de contos em 2018 com o selo do movimento.


Nas rodas de leitura que florescem pelo país, como as do coletivo Leia Mulheres Toledo, a literatura de Socorro Acioli surge como um convite irrecusável à imersão e à reflexão. Seus romances, A Cabeça do Santo e Oração para Desaparecer, não são apenas tramas envolventes; são portais para a compreensão de um Brasil profundo, onde o cotidiano se mistura ao mágico e onde as vozes silenciadas, especialmente as femininas, encontram um eco potente. Em suas páginas, discernimos uma profunda conexão com discussões sobre a descolonização do saber e a afirmação de outras epistemologias, aquelas que emergem das franjas da história oficial.
A escritora nos apresenta um universo onde a realidade é moldada não apenas pela lógica ocidental, mas por saberes ancestrais, pela fé popular e pela resiliência do espírito. É um mergulho em narrativas que, por sua própria existência e forma, desafiam as estruturas coloniais do pensamento, abrindo espaço para a pluralidade de visões de mundo.
 
Misticismo e Resistência 
 
No romance A Cabeça do Santo, somos levadas pela jornada de Samuel, cujos pés, transformados em bichos disformes pela exaustão da peregrinação, revelam a dureza de uma vida à margem. Contudo, é no inusitado que a narrativa se eleva: a Voz que Canta da cabeça de Santo Antônio. Essa manifestação mística não é um mero artifício literário; é a representação de um saber que transcende o dogma instituído, uma espiritualidade que brota da crença popular e da urgência da fé. A autora, com maestria, legitima essa voz que emana do povo, que destranca gavetas de sonhos antigos, sugerindo que a verdadeira sabedoria reside muitas vezes fora dos centros de poder e conhecimento reconhecidos. É uma desobediência às narrativas hegemônicas, uma abertura para a escuta de uma cosmogonia intrínseca à terra e à gente brasileira, que teima em existir e se fazer ouvir.
 
O Desaparecer como Reexistência 
 
Em Oração para Desaparecer, por sua vez, a autora nos convida a uma reflexão ainda mais densa sobre a existência e o apagamento. A imagem da protagonista que acorda "grudada de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia", para ser em seguida expulsa do buraco, evoca uma potente metáfora da mulher que se recusa a ser enterrada, a ser silenciada pela história. Esse desaparecer revela-se, paradoxalmente, como um ato de renascimento e resistência.
O romance explora as complexas relações com a memória, em que o esquecimento como lenitivo coexiste com a necessidade imperiosa de revisitar traumas para, então, reconstruir a identidade. Socorro Acioli lança luz sobre como as experiências, especialmente as femininas, são frequentemente subjugadas e distorcidas pelas narrativas dominantes. O enigmático Vendedor de Passados na trama é uma alegoria para a manipulação da história e a usurpação da autoria sobre as próprias vivências. A obra, assim, sublinha a urgência de retomar o lugar de fala, de reivindicar a narrativa de suas próprias vidas, desmantelando os pilares de um sistema que por séculos buscou subalternizar as vozes não conformes.
 
Resgate do Saber Ancestral
 
Socorro Acioli, com sua habilidade em fundir o realismo e o fabuloso, constrói pontes essenciais entre mundos, tempos e saberes. Seus livros não são apenas narrativas ficcionais; são ferramentas literárias que, ao abordar a fé popular, a memória e a resiliência feminina, contribuem para um pensamento decolonial, oferecendo outras perspectivas para compreendermos o Brasil e o lugar das mulheres em sua complexa tapeçaria social. Em um mundo onde as fronteiras do conhecimento e da existência são constantemente negociadas, a obra de Socorro Acioli é um lembrete vívido da força que reside nas vozes plurais, um farol a guiar as leituras que buscam, acima de tudo, libertação e autoconhecimento.
 
 
Cleonice Alves Lopes
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